O documento mais antigo que conhecemos é uma lápide com uma inscrição em hebraico, datada de 1297 (segundo leitura de Samuel Schwarz), e que pertencia à Sinagoga. Portanto, antes da expulsão dos judeus de Espanha, em 1492, vivia em Belmonte uma comunidade organizada. É plausível que o número de elementos tenha aumentado com a decisão dos Reis Católicos. Em Dezembro de 1496, D. Manuel I publica o Édito de Expulsão dos Judeus; em 1497, o monarca obriga ao baptismo forçado, à conversão os que permaneceram, voluntária ou involuntariamente, em Portugal. Serão os cristãos-novos, os marranos.
A instalação do tribunal da Inquisição, em Portugal, obrigou todos os judeus ao baptismo; também o casamento, os rituais funerários, os cultos no exterior dos lares seguiam a doutrina católica. A herança cultural judaica era transmitida oralmente, de geração em geração; mas aprendiam, como forma de sobrevivência, os rudimentos do catolicismo. A ``contaminação'' de fés era inevitável e com o decorrer dos tempos, a maioria dos que permaneceram no país adopta práticas sincréticas. Todavia, os anussim (convertidos à força) diziam-se e sentiam-se voluntariamente judeus.... e a vontade individual é uma dimensão que participa na construção da identidade. Não responderam de forma homogénea ao contexto inquisitorial: a) uns aderiram convictamente à nova fé; b) outros exilaram-se para continuar a praticar a lei de Moisés; c) houve quem se tornasse céptico, desiludido; d) muitos continuaram a judaizar clandestinamente, com graus de adesão e de conhecimento diversos, mostrando-se católicos no exterior. São os marranos que perpetuaram tradições sagradas, mitos e memórias comuns, produziram e reproduziram laços identitários.
Belmonte, tem-se repetido que os judeus que residem na vila ali se fixaram, vindos de Marrocos, após a decisão pombalina. A afirmação mais recente que envolve este domínio, encontrámo-la no livro ``Beira Baixa'': ``Nos finais do século XVIII estabeleceu-se em Belmonte uma grande colónia de judeus. Ocuparam um bairro designado por Marrocos que se transformou em judiaria fechada''. Trata-se duma legenda obviamente sucinta que sugere mais do que garante. Mas será possível falar duma ``judiaria fechada'' no século XVIII? A ``grande colónia de judeus'' estabeleceu-se em Belmonte porquê? Vinda de onde? Se eram judeus exilados que regressavam, quando e por que perderam sobrenomes hebraicos?
Na verdade, sabemos que encontrámos dezenas de processos no A.N.T.T. e que nos séculos XVI, XVII e XVIII, naturais e residentes do concelho de Belmonte conheceram os cárceres da Inquisição. O último processo que recolhemos é de ``Gracia Nunes, Gracia de Matos, cristã-nova, casada com Diogo Mendes Loução, lavrador, natural de Maçal do Chão, termo da vila de Celorico, e moradora na de Belmonte, Bispado da Guarda''; é condenada a ``cárcere e hábito a arbítrio''. O processo tem a data de 1750.
A designação do Bairro, Marrocos, (cuja toponímia teria origem na ocupação de judeus regressados do país com o mesmo nome) é anterior às leis pombalinas. Nos Livros de Décima, Contribuição Predial Rústica, Contribuição Predial Urbana, de Agências, nos registos de nascimentos, casamentos e óbitos, bem como nos Livros de Actas da Câmara Municipal, figuram nomes de ascendentes de membros que integram a comunidade actual. Eram judeus secretos, transmitiram uma tradição que se habituaram a ocultar, alternando períodos de maior clandestinidade, com outros de maior abertura.
É Samuel Schwarz que, em 1925, com a publicação do livro ``Os cristãos novos em Portugal no séc. XX'', inicia a desocultação da existência dos judeus belmontenses, para o mundo. Vindo para o concelho, em 1917, para dirigir a exploração do couto mineiro da Gaia, um dos mais ricos jazigos de cassiterite da Europa, ouve qualificar Belmonte como ``terra de judeus''. Afirma que ``Só depois de muitos meses de continuados esforços e ainda graças a um concurso de curiosissimas circunstâncias, conseguimos ser admitidos no seu grémio e assistir e tomar parte nas suas orações e cerimónias judaicas''
. O encontro ocasional, em Lisboa, com o belmontense Baltazar Pereira de Sousa, homem de negócios, que ouvira apelidar de judeu e que levou à Sinagoga de Lisboa, foi a chave que abriu todas as portas. Regressado à vila, submete-se ainda a um teste: pedem-lhe que reze uma oração. Fê-lo em hebraico, mas entre os vocábulos que pronuncia, identificam Adonai. Estava aceite: ``É um dos nossos.''.
O tempo era favorável. A implantação da I República permitia confiança. Nos Livros de Actas da Câmara Municipal é notória a influência de membros da comunidade durante este período. José Henriques Pereira de Sousa e José Caetano Vaz, por alvará do Governador Civil de Castelo Branco de 13 de Outubro de 1910, integram a Comissão Municipal Electiva, o primeiro como Presidente e o último como vereador do pelouro de Caria, a segunda povoação mais populosa do concelho. O trabalho que desenvolvem, surpreende se o confrontarmos com o de Executivos camarários anteriores e posteriores. A criação de escolas, as medidas sanitárias, as obras de remodelação e restauro de imóveis, a elaboração de planos para a construção de estradas... contrastam com a habitual gestão rotineira que Actas das sessões camarárias doutros períodos registam.
O anticlericalismo, um dos traços da época, beneficiaria um grupo de pessoas que mantinha com a Igreja Católica uma relação de distanciamento. É neste clima que Samuel Schwarz trava conhecimento com a comunidade. No Porto crescia o movimento liderado por Barros Basto. Era o renascer do Judaísmo nas Beiras e Trás-os-Montes. O jornal Ha-Lapid vai noticiando a renovação de um saber e de um fazer cultivado durante gerações. O conhecimento da perseverança dos marranos portugueses através de A Obra do Resgate de Barros Basto, do livro de Samuel Schwarz, despertou o interesse do mundo judaico. Em Janeiro de 1926, Lucien Wolf vem a Portugal a pedido da Anglo Jewish Association, da Alliance Israélite Universelle e da Spanish Portuguese Jew's Congregation. Visitou Lisboa, Guarda, Belmonte, Caria, Covilhã, Coimbra e Porto. ``Constatou directamente que tais marranos não eram um mito, pois não só travou relações com eles mas também assistiu as suas reuniões culturais''.
O relatório que elaborou esteve na origem da criação de ``... um comité para ajudar os marranos portugueses''.
A 7 de Setembro de 1926, Paul Goodman, secretário do Portuguese Marranos Committee,informa Barros Basto sobre a constituição do referido comité
. Entretanto, o jornal Ha-Lapid divulga a história, cultura e preceitos judaicos, noticia os acontecimentos relevantes da vida das comunidades (vida comunal) e de A Obra do Resgate. É perceptível o interesse em motivar os descendentes de judeus para assumirem a identidade religiosa e exorcizar o medo. Escreve: ``Nós que temos opiniões religiosas bem definidas inspiramos simpatia aos nossos adversários, entre os quais, apesar da diferença de credos, temos sinceras amizades''. Afirma mais Ben Rosh: ``Um adversário nobre e leal tem direito sempre ao respeito do seu antagonista (...). Todo aquele que, para não ser perturbado na sua digestão, se entrega a uma doblez de carácter, só merece dos combatentes das várias crenças o desprezo (...)''. Diga-se que este comportamento proselitista, de alguma forma, valer-lhe-ia desconfiança e incompreensão...
Mas a Obra do Resgate continuava. E sabemos assim que ``Em Janeiro (1927), seguiram para Belmonte, fazer uma visita aos anussim daquela vila, alguns jovens excursionistas da Associação de Juventude Israelita ``Hehaber'', que tiveram o prazer de ser recebidos em diversas casas criptojudias de Belmonte. Demoraram-se dois dias, e ficaram encantados com as amabilidades daquelas famílias, especialmente com as Sr.as e Srs. Pereira de Sousa (...). O Ex.mo Senhor Engenheiro Samuel Schwarz que se encontrava, na ocasião nesta visita em Belmonte, acompanhou os jovens do ``Hehaber'' (...). O Yom Kippur é celebrado, em 1928, na mesma localidade. Está presente, de novo, Samuel Schwarz que distribui exemplares do livro Kether Malkhuth, editado pela Comunidade do Porto.
Porém, a Covilhã que merece maior atenção. No dia 4 de Maio de 1929, numa reunião de várias famílias ``... em casa da Ex-ma Sr.ª D. Amélia Fernandes, bondosa e caritativa senhora cripto-judia, fiel observante dos ritos judaicos que lhe ensinaram seus pais foi decidida a fundação duma ``Comunidade legal judaica, de acordo com as leis da República Portuguesa''. Deliberam ainda que os estatutos seriam iguais aos da Comunidade do Porto. Dia 6 de Maio, em casa de José Henriques Pereira de Sousa, em Belmonte, decidem que o núcleo cripto-judeu da vila ficaria ``adstrito à Comunidade da Covilhã''. Em Caria, o líder do Movimento do Resgate é Francisco Mendes Morão.
Samuel Schwarz é, então, considerado como ``... o mensageiro do Resgate do distrito de Castelo Branco''; Ben Rosh di-lo-o ``... um amigo da nossa causa'' que, com Lucien Wolf e Paul Goodman ``... em todos os lares criptojudaicos devem ser memoriados e abençoados''.
Com a queda da primeira República, em 1926,o medo cresce , ``... está arreigado no espírito de muita gente'' Ainda assim, as reuniões de criptojudeus continuam. A 29 de Julho de 1929 é legalizada no Governo Civil de Castelo Branco, a Comunidade Israelita da Covilhã. Elegem corpos gerentes; Francisco Henriques Gabinete será o Presidente da Junta Directora; Samuel Schwarz manter-se-à Presidente da Assembleia Geral. A Sinagoga da Comunidade, Shaaré Kaballah (Porta da Tradição) é inaugurada em Setembro de 1929. O jornal refere a presença da M.me Oulman e de M.me Gradis que, na ocasião, oferecem 300 escudos ``para serem distribuídos por pobres criptojudeus''.
Na Yeshivá Rosh Pinah, do Porto, inscrevem-se jovens que deveriam ser os futuros guias espirituais das comunidades. Frequentada, entre outros, por 5 belmontenses, 4 fundanenses, 4 covilhanenses, aprendiam práticas e rituais da Lei de Moisés. Apesar de todo o dinamismo, o movimento de Barros Basto não vingou. Os processos militar e da P.I.D.E. arrastam à queda do projecto da Obra do Resgate. O nazismo, o estabelecimento do Estado Novo, as lutas de liderança entre judeus portugueses e os que no país se refugiavam, geram afastamentos, conflitos, a queda. Era o tempo das verdades indiscutíveis - Deus, Pátria, Família, Autoridade -; foi o tempo duma nova clausura religiosa por parte dos marranos.
Barros Basto e Samuel Schwarz verificaram que foram mulheres que memorizaram e transmitiram rituais e textos ou os escreviam. O medo reinstalara-se e das comunidades que, então, se organizaram na Beira e tiveram local de culto, em vários locais da região mantinha-se o acender das candeias com torcidas de linho; a Páscoa marcada pela Haggadah judaica (a limpeza meticulosa das casas, por exemplo); muitas orações
; hábitos alimentares (o sangrar os animais, certos enchidos (alheiras) e, quem sabe?, doces conventuais que, não tendo leite na confecção, podem acompanhar pratos de peixe e carne); influências culturais (a ideia de Portugal como nação escolhida, o messianismo...).
A ausência de chefes religiosos, o distanciamento relativamente aos textos sagrados, redundou maioritariamente na assimilação dos judeus. Nos anos 90, nas comunidades beirãs da Covilhã, do Fundão, de Penamacor, de Pinhel sobrevive a memória duma ascendência judaica. Em alguns casos, independentemente da adesão à religião mosaica (podem ser mesmo católicos praticantes), repetem a afirmação identitária judaica, ou seja, assumem um judaísmo que se situa numa penumbra epistemológica.
Só Belmonte preservou um núcleo duro, construiu uma matriz cultural que abriu o caminho para o ``retorno'' ao Judaísmo ortodoxo. Apesar do medo. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, belmontenses retiveram a existência duma ``lista'' elaborada por pessoas que eram manifestamente anti-semitas. Dizem, referindo-se ao suposto lider: ``... era um germanófilo. Ameaçava a comunidade com a divulgação e a denúncia na Alemanha, de pessoas da vila seguidoras da nossa Lei''.
Era um homem de poder e estas ameaças, a deslocação à Alemanha, garantiam obediência, conformismo e desencadearam muitos receios. Explicam: ``Às vezes fugiam e dormiam nas ``palheiras'' com o medo de serem apanhados''.
Durante o Estado Novo, também foram as mulheres as iniciadoras, as mestras do Judaísmo. É o tempo do prestígio das H'azzanot, das rezadeiras. A tradição que seguiam, fundamentada na memória, traíra conhecimentos e práticas. Mas a opção endogâmica favorecia a continuidade cúltica, o segredo face ao Outro. O anti-judaísmo e o anti-semitismo desenharam solidariedades entre os judeus, alimentavam a cadeia de transmissão de fazeres e saberes.
Com Samuel Schwarz soubemos que, desde a Inquisição, as candeias de Sabat nunca se apagaram, que o jejum de 24 horas de Yom Kippur se cumpria rigorosamente, que o Purim da Santa Rainha Ester não fora esquecido, que a Pessah era vivida com ``pão asmo'' ou ``dismos'', com ``ervas amargosas'', com a purificação das casas, reafirmando a esperança: ``Para o ano que vem, em Jerusalém''. Soubemos que os casamentos se realizavam primeiro, segundo a Lei de Moisés; percebemos a génese das histórias dos abafadores, quando conhecemos os rituais funerários que as mulheres realizavam antes de chamarem sacerdotes católicos e médicos, reiterando uma afirmação identitária judaica.
Na década de 80, quando foi possível o convívio com a comunidade, estes preceitos mantinham-se. Transmitidos oralmente, no feminino, contavam também alguns lares judaicos com o livro de Samuel Schwarz que guardavam ciosamente. Era o recurso certo, quando a memória traía. Judeus belmontenses, desde 1925, tinham à mão o manual do perfeito criptojudeu.
Assim preservaram rituais e textos de orações, tecendo uma coesão securizante que a partilha religiosa sustentava. Perpetuavam discursos de fé e invocavam a identidade de povo escolhido: ``... Adonai, nosso Rei e Rei de todo o mundo que escolheste em nós mais que todos, e nos deste a Tua Santa Lei (...)''. Louvavam ``... o Deus de Abraão, a constrição de David, a ciência de Salomão, a vitória de Gedeão, e o aviso que teve Lot, a felicidade de Jacob, o espírito de Elias, a caridade de Tobias e a paciência de Job''. Suplicavam: ``... que não sejamos presos, nem feridos, nem mortos, nem nas mãos dos nossos inimigos postos''. Manifestavam o desejo de ``... gozar a felicidade de Jerusalém...'', de aceder à Terra da Promissão.
F. Brenner: ``Concrétement (...) dans leur quotidien, on ne peut décéler aucun signe apparent de judaïsme...''. Não eram circuncidados, não possuíam livros sagrados, não falavam hebraico, não havia Sinagoga, nem rabinos. Mundo indecifrável para judeus que se habituaram a atribuir a pertença judaica a partir de critérios de que a prática marrânica se desvia.
Todavia, sempre guardaram tempos históricos com marca de sagrado. Guardar o Sábado é repetir o gesto divino; jejuar em Yom Kippur é lembrar as transgressões aos mandamentos judaicos, penitenciar-se; o Purimde Ester não fora esquecido porque a fraternidade de destinos, valorizou uma rainha que escondeu a identidade, mas foi salvadora do povo judeu; a Pessah é um elixir da esperança.
Em sumaA prática da endogamia, a fidelidade a uma filosofia, à Lei de Moisés, o anti-judaísmo e o anti-semitismo, a presença de Samuel Schwarz na vila, o querer ser judeu, a crença na pertença ao povo escolhido, na errância redentora e a espera messiânica garantiram a manutenção duma mundivivência, de um património cultural específico.
Os judeus de Belmonte são herdeiros do marranismo: homens desenraizados fruíram a sua religião, com carta de alforria; confrontados hoje com práticas rabínicas ortodoxas alguns aceitam-nas; para outros o peso da re-educação, da conversão foi insustentável.
Mantiveram a sua autarcia judaica, renunciando à religião oficial; são os neo-marranos a construir a riqueza polimorfa do Judaísmo.